30 de dez. de 2008

2008: Tudo que era sólido se desmanchou no ar

Escrito por Valéria Nader
22-Dez-2008

O ano de 2008 será encerrado com estatísticas ainda favoráveis de crescimento e salários, emprego e inflação - configurando um ‘círculo virtuoso’ que vem desde 2004, passado o susto da burguesia nacional e internacional com a eleição de um ex-operário para a presidência e, muito especialmente, aproveitando-se de uma maré internacional de grande liquidez e crescimento.

Mas, ao contrário dos 4 anos anteriores, e rompendo um circuito de pungente, ainda que traiçoeiro, ufanismo, esses bons números não serão festejados pela população nesse final de 2008. Mais que saudades, trazem embutido forte sentimento de dúvida, apreensão, estupefação, na medida em que já se faz clara uma conjuntura extremamente adversa em 2009, notadamente para as classes populares.

A crise financeira, que desde 2007 anunciava uma explosão, irrompeu com intensidade em setembro nas economias centrais e, como um raio, atingiu as economias emergentes – aquelas que no começo do ano compunham a tão esbanjada teoria do descolamento confeccionada pelos analistas de mercado. Foi assim que se encerrou precocemente, em setembro, o ano de 2008 no até então ‘paraíso tropical brasileiro’.

Não é mais admissível, para qualquer estudioso sério, negar a severidade da crise. Os noticiários recheiam-se a cada dia mais de novos dados de demissões de trabalhadores, evidenciando que a crise financeira já atingiu cabalmente a economia real em todo o mundo.

Nem mesmo é possível acreditar em uma reedição ingênua, para dizer o mínimo, de políticas keynesianas pra reverter essa conjuntura, em face da complexa teia de relações comerciais e produtivas que unifica o atual sistema capitalista, com controle absoluto do Estado pelos grandes conglomerados internacionais, impondo dificuldades quase intransponíveis para efetivas soluções nacionais. As dificuldades que o Banco Central tem encontrado em controlar a escalada do dólar, mesmo com a zeragem da dívida externa - tão festejada pelos condutores da política econômica -, não deixam dúvidas sobre o grau de controle exercido por estes conglomerados, associados, obviamente, a uma enfraquecida burguesia nacional. Apostam todas essas frações do capital, nacional e internacional, contra o real, abrindo a possibilidade de um novo ataque especulativo.

Para o economista e professor da Universidade Federal de Santa Catarina, Nildo Ouriques, presidente do IELA – Instituto de Estudos Latino-Americanos, a "saída do buraco" passa bem longe da elite, devendo ser conduzida pelo povo. Para Ouriques, naufragou uma forma conciliatória de fazer política, que é a da acomodação. Porém, "esse quadro só se elucidará de maneira plena na hora em que o governo começar a passar muito efetivamente os custos da crise para a grande maioria do povo, poupando os ricos, como já estão fazendo e ainda vão aprofundar".

Correio da Cidadania: A crise atual da economia americana tem colocado os estudiosos diante do seguinte dilema: o capitalismo vive uma crise estrutural profunda? Qual o teor e profundidade dessa crise a seu ver, especialmente quando sabemos que os ativos financeiros são cerca de quatro vezes superiores ao PIB mundial na atualidade?

Nildo Ouriques: Bem, não se trata apenas dos ativos financeiros. É uma crise estrutural do capitalismo, que não existiria somente para os desavisados. Importantes analistas estadunidenses publicaram livros, artigos, todos os meses, dando conta do tremendo buraco e das imensas dificuldades da economia local. E mais, ela não só foi prevista por analistas como agora o presidente Bush reconhece que existe uma recessão.

Quero dizer muito claramente que estamos abrindo as portas a uma grande depressão, o que é bem mais grave. Vai apertar o orçamento dos EUA, fortemente o da Europa, o do Japão, que já estava problemático há tempos e vem se arrastando há duas décadas. E ao contrário do otimismo reinante no Brasil, o país está à beira de um grande colapso, que se dará mais cedo que tarde. É uma situação gravíssima, marcada por algumas características.

Primeiramente, uma queda acentuada de preços do conjunto das mercadorias, o que é uma característica fundamental das grandes crises. Há uma desvalorização acentuada de todas elas, do petróleo à soja, passando pelo minério de ferro; e vão despencar ainda mais.

O segundo aspecto não é a quebradeira imensa de bancos, que fez instituições sagradas do capitalismo serem incorporadas pelo Estado. Quero chamar a atenção, sobretudo, para o grau de endividamento das empresas e das famílias nos municípios e estados americanos: é gigantesco. Não existe bolha especulativa ou expansão ilimitada do crédito como forma de enfrentar uma grande recessão como essa, que já se anunciava desde 19992/93, em 1997 e muito acentuadamente em 2001/02, e sem um grau de endividamento tão gigantesco. Tanto é que GM, Chrysler e Ford, grandes empresas, sucumbiram, estão praticamente quebradas, e agora solicitam que os EUA coloquem 35 bilhões de dólares para salvá-las.

E o terceiro aspecto é que a elite capitalista utilizou o instrumento sagrado que possui, o Estado, para incorporar todo o esforço. A conseqüência é que levaram a crise para o interior do Estado. Como resolver? Aumentar impostos não dá, pois vem aí uma recessão enorme. Jogar a dívida para frente? Também não, pois vão se queimar riquezas, concentrar capitais, destruir empregos, enfim, vão passar o custo à sociedade.

Estamos entrando no processo de depressão mundial mais sério desde 1929, de forma ainda mais grave e com uma repartição muito mais desigual dos custos da crise entre o centro e a periferia.

CC: Vários economistas têm advogado pelas políticas de caráter keynesiano, com reforço da regulação e dos gastos públicos como forma de reordenar a economia mundial. Ao mesmo tempo, alguns outros estudiosos são pessimistas quanto a soluções "nacionais" para a crise global nos marcos do atual sistema capitalista mundial, em face da complexa teia de relações comerciais e produtivas que unifica esse sistema, com controle absoluto do Estado pelos grandes conglomerados internacionais. Você parece também não acreditar em uma ação reguladora mundial que possa recolocar a ordem econômica.

NO: Primeiro que não está havendo ação reguladora nenhuma. Está ocorrendo a transferência de vultosos recursos públicos para os grandes conglomerados. Não vi nenhuma medida regulando os bancos.

CC: Ou seja, é o Estado correndo atrás do mercado, não o contrário.

NO: Exato. Estão reforçando a idéia de que é possível salvar aquela modalidade desenfreada de capitalismo travestida de intervenção keynesiana, que alguém, com muito mais autoridade econômica que eu, chamou de keynesianismo bastardo.

É preciso dizer que os trabalhadores estavam muito organizados nos EUA até 1925, 26. Até 1934, as greves foram muito intensas e os comunistas e anarquistas tinham um peso fundamental nos sindicatos. Este contexto obrigou a elite estadunidense a ceder os anéis para não perder os dedos. Foi isso que caracterizou o keynesianismo. E havia ainda a alternativa do socialismo. Hoje nenhuma das duas coisas existe. Por um lado, o grau de sindicalização é muito baixo nos EUA e uma alternativa sistêmica global não existe.

Existe somente o nacionalismo revolucionário da América Latina, que tem se revelado a única alternativa que realmente consegue organizar-se em relação à periferia da África, Ásia, países islâmicos. Mesmo assim, uma alternativa embrionária.

O que vemos agora é uma tentativa desesperada e clássica de os grandes monopólios salvarem o sistema através da intervenção do Estado, o que não me causa nenhuma surpresa. Eu nunca acreditei que o capitalismo era incompatível com o Estado, pelo contrário, só é capitalismo quando se encontra totalmente ligado ao Estado, que por sua vez é de classes. É o que a atual crise afirma de maneira categórica.

Porém, não tenho dúvida de que nenhuma das medidas conseguirá no curto e médio prazo tirar o capitalismo da crise. O que viveremos agora é exatamente o enfrentamento com o sistema. As forças das classes subalternas começarão novamente a checar a viabilidade do sistema.

A enorme crise fez com que se perdesse completamente aquilo que chamavam generosamente, e de forma mística também, de mercado - e de um modo fetichista. Não existe isso, os mercados acabaram há muito tempo. Os capitalistas são anti-mercado por natureza, querem o monopólio e controle completo sobre o Estado.

Toda a ideologia dessa gente efetivamente caiu por terra, desapareceu, o que é a grande questão.

CC: Mas, de qualquer forma – e sob as condições que estão dadas hoje e pensando ainda no âmbito mundial -, sob pena de um colapso estrondoso do sistema monetário internacional, essas medidas que têm sido adotadas em todo o mundo não têm alguma lógica, seriam absolutamente ineficazes ou inoportunas?

NO: Eu acho que tudo tem uma lógica, esses enormes recursos dos Estados sendo usados em operações de salvamento do capital. Primeiramente, ocorreu uma desvalorização de todos os preços e ações, mostrando o estrago do capital fictício. Tal caráter do capital em algum momento se encontra com o seu preço real.

De qualquer forma, aqueles que se beneficiaram são exatamente aqueles que têm muito poder político, controlam totalmente o Estado, instância de onde partem medidas destinadas a salvar seus ativos, sejam produtivos ou financeiros.

Em segundo lugar, reforçam ainda mais seu poder político com vistas a acumularem mais riquezas no médio e longo prazo. As medidas são destinadas a esses dois objetivos e, apenas de maneira eventual e aleatória, defendem o emprego ou a poupança da maioria da população. Esse objetivo se coloca se for possível, mas não está no horizonte.

Não me surpreende que assim seja enquanto estiver no controle o sistema capitalista, enquanto as classes subalternas não tiverem poder político autônomo. Por outro lado, também não tenho crença alguma de que no curto prazo as medidas surtirão efeito. Teremos uma grande depressão, com altíssimos níveis de desemprego, o funcionalismo público ficará com o salário arrochado, o investimento vai baixar violentamente, a precarização do trabalho vai piorar – isso num país que tem dois terços de sua força de trabalho sem carteira assinada – e a concentração de renda crescerá.

O Brasil ficará mais desigual do que já é, jogando por terra o otimismo do governo federal. As medidas não serão eficazes para tirar os países periféricos da crise e tampouco têm possibilidades de levantar o sistema de maneira global. Os pacotes que Obama lança quase toda semana são incapazes de reimpulsionar a economia capitalista para uma rota de crescimento, ainda que lenta, e sem sequer pensar nas taxas chinesas.

A idéia de que os Brics poderiam constituir uma alavanca para o sistema é uma idéia pra lá de ingênua. Uma ideologia incapaz de sustentar um sistema, pois esses países são periféricos. Dizem que a China é a grande saída capitalista. A saída terá de vir dos EUA, o centro da crise.

CC: Ou seja, não há uma crise da hegemonia americana. Pelo contrário, pode até haver um reforço do mecanismo de controle e exploração sobre os emergentes.

NO: Não, a hegemonia norte-americana é gigante. A grande questão é saber se essa crise aprofunda sua debilidade ou se os EUA conseguem recuperar o poder que vinham perdendo inexoravelmente. E tenho convicção de que não serão capazes de recuperar o poder, gerando uma grande divisão na sociedade local.

Já existem 44 milhões de pessoas sem plano de saúde, o desemprego crescerá violentamente. As notícias mostram que as companhias estão quebrando e, para se proteger, demitem. Isso impede uma maior coesão social e dificulta a ação do país em recuperar a hegemonia.

CC: Mas está despontando no horizonte algum outro pólo hegemônico?

NO: A China é um candidato, assim como a Europa. A América Latina também, dentro de uma proposta integrada de ruptura com a ordem global, na linha que Chávez, Correa e Morales colocam há muito tempo, que eu chamo de nacionalismo revolucionário. Dessa forma, teríamos uma possibilidade de influenciar nas decisões. Fora disso, não há nenhuma possibilidade, através de G-20, G-44, G-76, de que os países da periferia sejam ouvidos. Isso só serve para jornais, diplomatas irresponsáveis, mas não há capacidade de decisão e poder político. Tais atribuições ficam reservadas aos que detêm efetivamente o poder militar, econômico e influência cultural.

O Brasil só poderia influenciar se de fato estivesse unido no continente, jogando no processo de integração política, econômica e cultural no âmbito regional, apoiando uma política de, digamos, ceder poder para ganhar em soberania na América Latina. Ceder poder ao Equador, Bolívia, Argentina, Paraguai, Venezuela, fortalecer a Unasul, criar o Banco do Sul, eliminar essa elite brasileira que não se opõe e nem viabiliza a integração latino-americana. E tudo dentro de um bloco único, fortalecido, com moeda e banco únicos, com ações da PDVSA, da Petrobras, da Petroecuador, para juntos avançarmos nas áreas da química, da ciência, tecnologia etc., e assim levantarmos o continente.

Seríamos protagonistas, a despeito de haver ou não um novo Bretton Woods, que não haverá e pelo qual ninguém está chamando. Os EUA não querem chamar um novo acordo em tais termos, porque assim teriam de dividir o poder. Nós teríamos de levantar a América Latina para impor ao mundo uma nova correlação de forças e, a partir dela, discutir melhores condições para os pólos da periferia.

CC: Pode-se inferir, de sua análise até aqui, que os bons indicadores econômicos de crescimento, rendimento, emprego e inflação do Brasil em 2007, e até o terceiro trimestre de 2008, já viraram peças do passado, não? A crise financeira já resvalou para a economia real.

NO: Esse cenário já evaporou, não tem mais a menor consistência. Eu entendo que o ministro seja otimista, afinal, quer garantir o emprego dele, mas é uma atitude absolutamente irresponsável.

As empresas brasileiras estão altamente endividadas, apostaram em especulação cambial, perderam no mínimo 60, 70 bilhões de dólares e precisam resgatar suas dívidas entre seis meses e um ano. Essa abertura da conta de capitais, que permite aos empresários exportadores deixarem o dinheiro lá fora por até 180 dias, quando antes eram 360, transformou o capital produtivo exportador em especulador, como os bancos. E essa gente não tem crédito no exterior, pois este está muito caro.

Por outro lado, o BNDES e o governo estão fechados e não pretendem ser um cemitério de empresas. Portanto, os empresários vão fazer um ataque especulativo contra a moeda para pegarem aqueles 200 bilhões de reservas, que podem desaparecer num espaço de 18, 20 dias, não tenho a menor dúvida - desapareceram 70 bilhões em apenas uma semana.

As reservas são baixas e incapazes de enfrentar o ataque especulativo, um recurso que os empresários usarão. E ainda colocarão o Brasil na linha de um novo processo de endividamento estatal sob monitoramento do FMI. É o que está sendo preparado. O ataque especulativo está na ordem do dia. As medidas para controlar câmbio, fechar a conta de capitais etc. são absolutamente tímidas. Não existem!

CC: Quer dizer, nossa blindagem econômica à crise é mesmo de papel crepom, como ressalta o economista Reinaldo Gonçalves? Mesmo sabendo que os capitais especulativos, voltados a aplicações de curto prazo, representam hoje uma proporção significativa de nosso passivo externo – aumentando as chances desse ataque especulativo -, os 200 bilhões de dólares em reservas externas não são um bom colchão, diante de uma dívida externa que não mais estaria dolarizada?

NO: Não estamos absolutamente blindados à crise. Assisti a uma conferência do Reinaldo e é muito clara a análise dele. E esse dado da falta de cobertura das empresas – o Reinaldo não tocou no ponto, mas tenho certeza de que aceitaria tal hipótese – vai forçar a burguesia brasileira a trair a nação e perpetrar um ataque especulativo.

Essa desvalorização do real, de 53%, se deve àquela sobrevalorização cambial acumulada. Agora vem outra que é para cobrir as despesas. A burguesia e o empresariado brasileiro têm a nação apenas como mercadoria para traficar no mercado mundial. Eles não vão vacilar em impor a todos nós um processo ainda mais terrível.

CC: Nós já estamos sob um ataque especulativo?

NO: Ainda não. Já estamos num processo acentuado de desvalorização cambial, mas iremos sofrer esse ataque contra a moeda, destinado a endividar o país e a passar o prejuízo para a grande maioria da população através de uma política de austeridade completa, com cortes significativos em saúde, segurança, educação, ciência e tecnologia, cultura etc. Por fim, vão colocar o orçamento exclusivamente a serviço do pagamento da dívida interna e das novas obrigações do endividamento externo, que nessas circunstâncias inexoravelmente voltará.

CC: O governo brasileiro tem tomado várias medidas pra lidar com a crise: desde as liberações de compulsórios pelo BC, operações de swap cambial, venda de dólares no mercado à vista e isenção de IOF – Imposto sobre Operações Financeiras - sobre investimentos estrangeiros diversos no Brasil, até medidas como a MP 443, através da qual o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal podem comprar ações de instituições financeiras, e o socorro do BNDES a empresas em dificuldades E vem aí mais um pacote de medidas fiscais, creditícias e ligadas ao setor de habitação e infra-estrutura, para estimular a economia em 2009. Essas medidas não terão alguma eficácia para minorar os impactos da crise internacional na economia interna?

NO: O problema é que nenhuma dessas medidas é destinada a controlar o câmbio. Nenhuma. E por que está proibido esse caminho? Na Europa e nos EUA, estão estatizando bancos. Por que aqui não estão fazendo o mesmo?

CC: Nesse sentido, todas essas serão medidas inócuas?

NO: São absolutamente insuficientes, estão perdendo tempo e está se constituindo uma grande irresponsabilidade do governo. Uma irresponsabilidade que tem lógica.

Não quero aqui fazer uma leitura liberal. O capital produtivo exportador, os banqueiros e o latifúndio estão ganhando dinheiro com tal política, e isso é o fundamental. Completamente dentro da lógica do modelo.

CC: Muito se tem insistido na reabertura da rodada de Doha como forma de dar um alento aos emergentes em meio à crise – o que, no caso do Brasil, representaria, dentre outros, a possibilidade de reforçar a exportação de biocombustíveis. Aqui também não estaríamos somente carimbando esse modelo, reforçando a ‘reprimarização’ de nossos padrões de comércio?

NO: Essa defesa também vai por água abaixo, pois o fato concreto é que todas as mercadorias estão se desvalorizando. O biodiesel não será uma alternativa para o Brasil. Além do mais, o Brasil não é um país emergente. É um país subdesenvolvido e dependente. Quanto à reprimarização, ela tem sido realmente a tendência dominante.

CC: Você mencionou acima o ‘nacionalismo revolucionário na América Latina’ como uma alternativa de resistência à crise. Em nosso país especificamente, como a crise encontra as forças políticas de esquerda, em termos de sua organização e possibilidade para, no mínimo, construir uma plataforma de medidas destinadas a defender as camadas mais pobres dos efeitos da crise?

NO: É preciso compreender historicamente a situação. O Lula foi a expressão de 30 anos de luta popular. E, precisamente nos últimos seis anos, ele queimou sua credibilidade. A população, claro, é muito mal informada, vide a aferida popularidade do presidente. E, como alternativa, ela olha o tucanato; e a tucanagem foi terrível...

Mas, como diz Marx, não podemos ser liberais às custas da idade média, ou seja, ameaçar o povo com a volta da tucanagem para garantir ao petismo mais mil anos de vida. O que a crise fará é queimar as duas modalidades de administração da mesma crise: os tucanos de um lado, os petistas de outro. Essa aliança ‘PTucana’ se queimará rapidamente.

Veremos emergir uma nova classe política, e claro que ela nascerá de tais contradições. A atitude do governador Requião, no Paraná, de fazer um seminário gigantesco é a iniciativa de um governador do PMDB que teve a lucidez e a clareza de enfrentar essa gravíssima situação da economia, chamando todos para uma alternativa política e econômica. Veja que são luzes dentro do terrível túnel que atravessamos.

Além disso, o sindicalismo brasileiro precisa perder o caráter abobado que adquiriu e recuperar sua lucidez, o que significa entender que o sindicato não pode depender de governo, ministro do trabalho etc., mas sim de seu ativismo político. Até porque enfrentará um gigantesco ataque ao emprego e vai ter que aprender uma lição exemplar, pois esqueceu que o fundamental das conquistas dos trabalhadores não vem por dádivas do governo, mas sim pelas lutas políticas e conquistas históricas dos trabalhadores.

E o sindicalismo brasileiro, que não é nenhuma maravilha – baseado naquele sindicalismo do ABC que deu no Lula –, terá de avançar em seu caráter de classe, compreendendo que seu projeto deve ser o socialismo.

CC: E você acredita que a atual crise abre realmente tal perspectiva?

NO: Já abriu, isso está em questão por todo lado.

CC: Se a economia brasileira, na fase de bonança internacional, tivesse sido conduzida por um outro projeto de país, por um outro modelo econômico, ou pelo menos por medidas mais rígidas no controle do capital especulativo, sofreríamos menos com essa crise?

NO: Não tenho dúvidas que sim. Observem o que o presidente Chávez fez. Estatizou, controlou bancos, impediu fuga de capitais, reforçou o poderio da nação, recuperou o petróleo. De certo modo sofrerá muito menos. Assim como Evo Morales e Rafael Correa, que até está fazendo uma auditoria da dívida.

Qual o fator que fará esses países sofrerem menos? Não é somente por causa da política econômica. Mas também porque a burguesia desses países é mais ética que a burguesia brasileira. A burguesia brasileira conspira contra a nação, eis a questão.

Mas não adianta especularmos sobre o passado, a grande questão é o futuro. E o futuro diz que vamos sair desse buraco pelas mãos do povo, não pelas mãos da elite, nem por meio desses acordos e, sobretudo, por essas formas de se fazer política.

Naufragou uma forma de fazer política, que é a da acomodação, da conciliação. Porém, esse quadro só se elucidará de maneira plena na hora em que o governo começar a passar muito efetivamente os custos da crise para a grande maioria do povo, poupando os ricos, como já estão fazendo e ainda vão aprofundar.

CC: Considerando essas opções políticas e condições que são dadas nacionalmente, você acredita que se o governo conseguisse enfrentar essa crise ancorando-se mais no mercado interno, mesmo diante de nosso alto coeficiente de importações, a população poderia ser mais poupada?

NO: Eu diria que não é esse o problema. Não acho que esse projeto seja possível e, para que fosse realizado, teria de ser revisto um pacto de poder que não estão dispostos a rever.

O Brasil é governado pelas multinacionais, capital produtivo exportador, latifúndio, sistema bancário, sendo apoiado pelos fundos de pensão. Desfazer esse pacto, montado em 94, seria a grande conquista da crise. E não creio que o governo Lula irá fazê-lo.

As pessoas precisam quebrar a relação sentimental que têm com o governo Lula. É preciso quebrar a relação mítica que o Lula, ainda como ex-líder operário dos trabalhadores, exerce sobre a cabeça de muita gente boa. Não tem que olhar se é o Lula, o Mantega; interessa é que todas as medidas são anti-populares.

CC: Toda essa lógica perversa por você ressaltada terá ainda que se aprofundar para que resulte na compreensão da população e em uma conseqüente reação social?

NO: Não acho que seria necessário. O que temos já é suficiente. Mas claro que um aprofundamento tornará tudo ainda mais evidente. Para aqueles que acham que o petismo, o lulismo, o cutismo são o horizonte da luta social brasileira, não são. Trata-se de uma limitação que devemos superar rapidamente.

Precisamos não só discutir a crise, mas articular um projeto nacional popular, pois minha convicção fica dentro de um nacionalismo revolucionário. A grande tarefa é ampliar esse processo para o socialismo. Aquilo que o presidente Chávez chama de Socialismo do Século 21, o Evo Morales de Revolução Democrática e Cultural e o Rafael Correa de Revolução Cidadã.

Nacionalismo revolucionário e socialismo. Essa será a grande pauta a partir de agora.

Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.

Colaborou o jornalista Gabriel Brito.

Fonte: www.correiodacidadania.com.br

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