15 de nov. de 2010

Um balanço da Feira (56ª Feira do Livro de Porto Alegre)




Esta Feira que termina hoje me faz chegar a duas impressões absolutamente distintas.

A primeira é que para sujeitos como eu e outras pessoas com quem conversei – colegas jornalistas ou escritores, gente que frequentam livrarias o ano todo e costuma comprar livros a intervalos mais ou menos frequentes ao longo dos 12 meses do ano —, a Feira não anda tão atraente assim há alguns anos: os amplos e atraentes descontos que sempre fizeram a graça e a chama do evento ou andam sumidos ou, quando praticados, não chegam a constituir um atrativo de fato, principalmente quando praticados, em plena Feira, pelas lojas de grandes redes do setor. E o livro muitas vezes já é caro na origem, e o desconto amortiza o impacto, mas não o dilui (o que vale para a literatura de ficção que eu consumo ou os livros técnicos que genteque eu conheço compra). Venho notando um gradativo declínio no número de livros que eu costumava comprar de uma Feira para outra – o que é engraçado, porque chego à conclusão de que adquiria mais livros nos balaios da Feira quando ganhava uma merreca em estágios intermediados pelo CIEE em meados dos anos 1990 do que hoje, quando sou um profissional muito melhor remunerado em comparação com aquela época. Claro, isso é uma questão minha e não pode ser generalizada para a Feira, mas acho que é uma sensação que se conecta com coisas que as demais pessoas citadas ali na primeira frase deste parágrafo também comentam (não esqueçamos que, se fosse uma impressão só minha, talvez não tivesse passado pela feira uma caravana como a dos “saldosistas”).

Outro ponto que reforça esta impressão é que um certo caráter paroquial que a Feira tinha até ali os primeiros anos da década de 2000 se foi, e eu particularmente não estou lamentando por isso, apenas constatando. Não sei se isso é melhor ou pior – provavelmente para quem via a praça como um ponto de encontro de uma certa comunidade cultural seja uma decepção, mas a expansão inevitável de qualquer evento que cresceu ininterruptamente ao longo de meio século levaria inevitavelmente a este ponto — e além do mais, as possibilidades de contato frequente não são necessariamente escassas nesta era digital (dois dos meus melhores amigos, quase irmãos, hoje vivem um em Florianópolis e outro em Curitiba, e nem por isso deixei de manter contato quase diário, no mínimo semanal, via e-mails, gtalques e emessenes). Logo, a praça como pretexto de encontro ainda está lá para quem quiser usá-la, embora este não venha sendo mais o centro da questão – e provavelmente será cada vez menos. Acho que a Feira vai se tornar cada vez mais um evento centrado em palestras e mesas sobre temas relevantes do mercado literário e da literatura (o que não é ruim, também, é só outro jeito de fazer a Feira). Ainda que o episódio da poeta Telma Scherer, que começou uma performance de poesia na praça e a terminou em um posto da Brigada Militar, mostre que ainda se tem de avançar muito se se quer criar um espaço de arte e diálogo aberto, e não apenas sujeito à programação oficial.

Por outro lado, o que me leva à segunda impressão, não se pode ignorar os números (talvez apenas gênios do porte de um Nelson Rodrigues possam declarar impunemente que a objetividade é idiota e que a estatística é burra). E o fato é que esta feira, mesmo convivendo com um General Osório ensacado, canteiros esburacados e um espelho d’água quase transformado em criadouro de mosquitos registrou números muito melhores do que o ano passado e provavelmente os ano anterior também (talvez até mesmo o antepenúltimo ano, mas isso é melhor esperar os números oficiais da Feira toda para dizer). E muitas das pessoas com quem conversei na Feira, o passante eventual, o sujeito que espera justamente a Feira para ver livros (e às vezes comprar só um), o frequentador que gosta da Praça como um programa social no Centro já tão abandonado, para esses a Feira é um sucesso, e a Feira deles é tão válida quanto a minha. O ponto de encontro deixou de ser da tal comunidade intelectual/artística, mas é uma oportunidade de encontro das pessoas com os livros no meio da praça, não no ambiente por vezes por demais protegido de uma livraria. A Feira no cais é um passeio no qual crianças associam livros e histórias à beleza natural daquela paisagem oculta durante o resto do ano, e quem sabe o que isso poderá fazer no futuro na cabeça desses potenciais leitores? Talvez transformar livros em uma memória associada às melhores experiências de infância, criando assim um afeto pelos livros que a escola na maioria das vezes não consegue. E assim, não se pode dizer que a Feira não esteja mais executando o projeto que motivou sua própria criança, 55 anos atrás: levar os livros ao povo e ao espaço público, porque isso é sim feito. A Feira é notícia, e tema para discussão mesmo quando as avaliações são mais pessimistas do que otimistas, como foi o tom de muitos dos comentários sobre a Feira feitos no ano passado. São duas semanas em que o livro volta à arena pública. Quem pode dizer que isso é ruim? Márcio Renato dos Santos, escritor e jornalista da Gazeta do Povo do Paraná e do jornal Rascunho, no debate sobre Literatura e Novas Mídias ocorrido na tarde de sábado no Centro Cultural Erico Verissimo, chegou a dizer que sempre se fascinava ao vir a Porto Alegre e encontrar aquela Feira tão tradicional e funcionando ano após ano, algo que, ele lamentava, Curitiba ainda não conseguiu fazer:

– Vocês que vivem aqui, talvez não percebam a real dimensão do que é ter uma feira como esta. Eu gostaria que a organização daqui fosse ao Paraná para ministrar cursos lá sobre como manter uma iniciativa desta por mais do que três anos. – foi o comentário

São essas duas feiras que convivem na Praça. E por isso, não se pode dizer agora que uma prevaleça sobre a outra. Até porque, pensando bem, não são duas feiras, esqueçam a imagem inapropriada. O que temos são dois modos de enxergar a mesma feira. Que cada um escolha o seu ou faça como eu: tente buscar o equilíbrio entre essas duas visões. E entre muitas outras.

Fonte: Blog Mundo Livro - Carlos André Moreira - Zero Hora - Porto Alegre - RS

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