Desde 2001, o Partido dos Trabalhadores escolhe seus dirigentes de todos os níveis (nacional, regional, municipal e, onde existe, zonal) através de um mecanismo intitulado “Processo de Eleições Diretas” (PED), previsto no seu novo estatuto de 2001.
O PED trata-se de uma ampla eleição interna, da qual participam todos os filiados, seguindo o princípio democrático-liberal de “cada pessoa, um voto”. Em se tratando de um partido de massas, cujo número de filiados está em torno do primeiro milhão, o PED acaba envolvendo centenas de milhares de pessoas, após uma campanha eleitoral que costuma durar dois meses. No PED de 2005, o segundo da história do partido, aproximadamente 315 mil petistas – devidamente em dia com suas obrigações financeiras junto ao partido - compareceram às urnas. Disputam o PED as diversas frações (SARTORI, 1982) do PT (ou “tendências”, conforme o linguajar petista), que têm direito a inscrever chapa para os quatro níveis, e concorrem em um sistema eleitoral que combina a maioria absoluta (para escolha dos presidentes das instâncias) e a proporcionalidade (para a definição dos membros dos diversos diretórios).
Assim, o PT adota um regime presidencialista onde o presidente do partido governa em conjunto com o seu respectivo diretório e, se sua fração não detiver maioria absoluta no mesmo, terá que formar uma coalizão com outras forças partidárias com participação na instância. Exemplar da aplicação desta esta regra foi o período no qual José Dirceu esteve à frente da presidência nacional do PT. Dirceu era apoiado por um conjunto de frações que tinham a maioria absoluta do diretório nacional, e passaram a atuar em conjunto sob o nome de “Campo Majoritário”. Por outro lado, a incapacidade de formação destas coalizões partidárias - situação já observada em diversos diretórios estaduais e municipais do partido - inviabiliza ou, ao menos, dificulta sua governabilidade. Assim, estes traços de democracia consociativa (LIJPHART, 2003), derivados do seu próprio caráter pluralista[1], aproximam o sistema político do PT da definição de “presidencialismo de coalizão” (ABRANCHES, 1988), originalmente adotada por Sérgio Abranches para tratar do funcionamento do presidencialismo brasileiro em ambiente de democracia.
Os três PEDs realizados pelo PT têm, cada qual, uma marca particular, por terem ocorrido em momentos decisivos na história partidária. O primeiro, de 2001, ao reeleger José Dirceu presidente nacional – pela primeira vez, pela via direta - e formar uma ampla maioria do diretório nacional para o antigo “Campo Majoritário”, foi decisivo para os rumos assumidos na campanha eleitoral de Lula à Presidência da República, em 2002. Com isso, abriu-se caminho para que o PT fizesse inflexões táticas, como a aliança com o PL, e ideológicas, como a “Carta aos Brasileiros”, apresentada por Lula no início da campanha eleitoral, marcando compromisso partidário definitivo com a estabilidade da economia e o respeito aos contratos. Estes dois movimentos foram decisivos para que Lula acumulasse condições para se eleger em 2002.
O segundo PED realizou-se em 2005, no momento em que o PT enfrentava a mais grave crise política da sua história, com as denúncias do “mensalão” envolvendo dirigentes partidários, parlamentares e integrantes do alto escalão do governo Lula. Mesmo que tais denúncias ainda hoje careçam de provas e de julgamento definitivos, seu impacto sob a opinião pública interna e externa ao PT foi enorme. O PED daquele ano foi fundamental para o PT superar esta crise, e não só pelo alto envolvimento da militância, que compareceu em grande número para votar, dando um novo gás ao partido. O resultado das urnas foi outro elemento importante, pois se reconfigurou a correlação de forças no partido, acabando com a hegemonia isolada do “Campo Majoritário”[2] e aumentando o espaço das frações mais à “esquerda” (como a “Articulação de Esquerda – AE” e a “Democracia Socialista – DS”) e ao “centro” (como “Movimento PT – MPT” e “PT de Luta e de Massas – PTLM”) do espectro partidário.
Esta nova configuração de forças obrigou o diretório nacional do PT a funcionar de forma mais consociada, oposta ao anterior hegemonismo. Na prática, isso serviu para democratizar mais as relações internas de poder. Exemplar foi o XIII Encontro Nacional, realizado em 2006 em São Paulo, onde as resoluções aprovadas foram apresentadas em conjunto pelas principais forças partidárias, representantes da “esquerda”, do “centro” e da “direita” petistas[3] – fato, até então, inédito na história do PT.
O PED de 2007 é o primeiro após a reeleição de Lula, em 2006. Superados os efeitos mais devastadores da crise do “mensalão”; recomposto um consenso interno em torno dos temas econômicos tradicionais do PT, mais identificados com o chamado “desenvolvimentismo”[4] e; desfeita a onda faccionista que marcou o primeiro governo Lula, que resultou em diversas baixas partidárias, o PT vive agora o dilema de construir uma candidatura própria a presidente em 2010[5], já que Lula não pode ser mais candidato. A solução deste dilema é fundamental para a institucionalização do PT como partido nacional (HUNTINGTON, 1975; MAINWARING & SCULLY, 1995 e MAINWARING, 2001), capaz de eleger um Presidente da República, mesmo sem dispor da liderança carismática de Lula, que foi o candidato do PT em todas as eleições presidenciais desde 1989[6].
Consideradas estas variáveis, a observação da composição das chapas apresentadas para o diretório nacional do PT neste PED de 2007, atentando-se para as alianças feitas entre diversas frações partidárias e comparando-se com o PED de 2005, constitui-se num bom exercício para se compreender a nova feição do PT após o início do governo Lula. Mas serve também para perceber, empiricamente, a razão instrumental que orienta os jogos de poder desenvolvidos pelos diversos atores políticos internos ao PT. Tais atores agem motivados por razões ideológicas, sem dúvida, mas, principalmente, pela busca de maximização dos seus espaços de poder no partido, considerados os elementos institucionais e conjunturais nos quais se desenrola a disputa. Mais ainda, podemos perceber como o PT funciona como um sistema político próprio, o que é definidor da atuação das suas frações (SARTORI, 1982; PANEBIANCO, 2005).
A primeira constatação: depois do início do governo Lula, diminuiu o espaço da esquerda e da direita partidárias, e aumentou o espaço para uma composição interna de poder mais orientada para o centro.
No PED de 2005, apresentaram chapa as seguintes frações de esquerda: O Trabalho; Articulação de Esquerda – AE (apoiada por outros grupos regionais, como a Esquerda Democrática, do deputado federal gaúcho Henrique Fontana, e pelo prefeito de Recife, João Paulo) e; Democracia Socialista – DS (igualmente apoiada pela fração Tendência Marxista – TM e por grupos regionais, como Construção: democracia e socialismo, do DF, dentre outros). Além dessas, outras chapas se identificavam com a esquerda petista, como a chapa “Movimento Popular” (liderada pelo dirigente da Central de Movimentos Populares, Luiz Gonzaga “Gegê”) e a chapa “Esperança Militante”, do candidato a presidente nacional Plínio de Arruda Sampaio, apoiada por independentes (como o deputado federal carioca Chico Alencar) e pelas frações Ação Popular Socialista – APS e Brasil Socialista - BS, do líder sem-terra Bruno Maranhão, dentre outros. Duas frações de centro apresentaram chapa, o Movimento PT e o PT de Luta e de Massas, além da chapa independente e centrista – apesar de muito próxima ao Campo Majoritário – “O partido que muda o Brasil”, formada quase integralmente por militantes mineiros. Por fim, o então Campo Majoritário, ocupando a posição à direita do espectro partidário, apresentou sua chapa própria “Construindo o novo Brasil”.
Juntas, as chapas de esquerda atingiram 36,8% dos votos válidos (equivalentes a 30 vagas no diretório nacional), somados aos 20,4% (16 vagas) dos centristas e aos 41,9% (34 vagas) do Campo Majoritário. Os restantes 0,9% dos votos válidos foram para uma chapa independente composta apenas por petistas do Ceará, “O Brasil agarra você” (1 vaga). Com tal distribuição de vagas, é inevitável que qualquer postura hegemonista de exercício do poder seja substituída por práticas consociadas, já que nenhuma das frações petistas consegue maioria do diretório sem disposição de negociar com outras forças partidárias. Entretanto, de lá para cá, a correlação de forças mudou no PT.
O primeiro movimento se deu logo após o PED de 2005, quando houve uma debandada de militantes petistas à esquerda, principalmente identificados com a DS e a chapa “Esperança Militante”. A fração Ação Popular Socialista – APS e seus companheiros de chapa Plínio de Arruda Sampaio e Chico Alencar, avaliando que a hegemonia do Campo Majoritário tinha sido mantida, decidiram abandonar o PT, filiando-se rapidamente ao ultra-esquerdista PSOL, para cumprirem o calendário eleitoral[7]. Mas a principal transformação na esquerda petista se deu em princípios de 2007, envolvendo a maior fração de esquerda do PT, a Democracia Socialista, DS.
Após incorporar pequenos grupos regionais[8] que lhe apoiaram no PED de 2005, a DS aproximou-se do centro petista. Junto a alguns militantes independentes, como Paul Singer, o deputado José Eduardo Cardoso, os ministros Tarso Genro e Fernando Haddad, e até a petistas tradicionalmente vinculados ao Campo Majoritário, como o prefeito de Guarulhos Elói Pietá, o senador Eduardo Suplicy e o governador de Sergipe Marcelo Deda, a DS apresentou ao III Congresso do PT a tese “Mensagem ao partido”. A “Mensagem”, ressaltando a necessidade de um resgate da “ética” no PT, tomou para si temáticas ideológicas que, no PT, sempre foram caras ao Campo Majoritário, como o papel da “revolução democrática” e do “republicanismo” para a construção da sociedade socialista. Tais temáticas, mais próximas da cultura política da esquerda democrática ou social-democrata, são certamente estranhas à tradição à qual a DS originalmente se identificava, o trotskismo[9]. É outra a compreensão dos marxistas revolucionários sobre o processo de revolução socialista. Com esse discurso, a “Mensagem” acabou recebendo adesão de importantes intelectuais petistas, como a filósofa Marilena Chauí e a cientista política Maria Victória Benevides.
O afastamento dos militantes mais radicais da DS, a partir de 2003 – como a ex-senadora Heloísa Helena, atual presidente do PSOL, e o economista João Machado - foi fundamental para esta sua aproximação com o centro partidário. Agora, estão à frente da DS, principalmente, petistas gaúchos, como Raul Pont e Miguel Rosseto, e mineiros, como o cientista político Juarez Guimarães, além do eterno dirigente nacional Joaquim Soriano, pessoas que, talvez pela sua experiência de “socialização política” (PUTNAM, 1998) na gestão pública e partidária, tenham sido levados a assumir um perfil mais moderado e pragmático. Logo após o encerramento do III Congresso, a “Mensagem” lançou um documento afirmando sua intenção de “se constituir enquanto movimento permanente dentro do PT”[10]. Esta intenção imediatamente se constituiu numa implicação prática, o lançamento de uma chapa da “Mensagem” ao PED de 2007, junto com a candidatura do deputado paulista José Eduardo Cardozo à presidência nacional do PT.
Se a participação da DS neste processo pode implicar, em se tratando das disputas intra-partidárias, na sua diluição dentro da “Mensagem”, em termos ideológicos, evidencia o caminhar desta fração para o centro partidário. Em entrevista ao blog do jornalista Josias de Souza, Tarso Genro, um dos principais artífices da “Mensagem”, assim respondeu ao ser questionado sobre os objetivos do seu novo grupo: “Nossa idéia é criar um novo espaço de diálogo no PT, que supere a dicotomia que preside as relações internas. Hoje, ou você é considerado uma pessoa da direita ou é da chamada esquerda do partido. Essa visão é equivocada. Não resolve as grandes questões partidárias e políticas que temos que enfrentar.”[11] Há tempos, o objetivo de Tarso Genro para dentro do PT é construir uma grande fração de centro – sob a sua liderança político-intelectual –, que sirva de pólo de atração para petistas de origens diversas do espectro ideológico. Foi movido por este mesmo espírito que Tarso Genro ajudou a fundar o “Movimento PT”, justamente às vésperas do II Congresso partidário, em 1999, fração da qual se afastou depois do governo Lula. O que é novo é a DS, cuja identidade sempre esteve ligada à afirmação do caráter de esquerda e socialista do PT, se incorporar em uma iniciativa de natureza centrista - e esta é a primeira grande novidade do PT em 2007.
Assumindo um discurso à esquerda no PT, assim, restam a Articulação de Esquerda, pequenos grupos, como BS, TM e O Trabalho, além de outros ainda menores e com pouca penetração nacional, como a Esquerda Marxista[12], dissidência de O Trabalho, com base principalmente em São Paulo – seguindo a tradição da ultra-esquerda, o racha se deu entre duas das menores frações do partido. Destas, O Trabalho e a Esquerda Marxista seguramente estão no campo da ultra-esquerda, ligadas a uma vertente mais radicalizada do trotskismo internacional, a QI-CIR (Quarta Internacional – Centro Internacional de Reconstrução), fundada pelo francês Pierre Lambert (SILVA, 2001). Sua proposta é a de resgatar o manifesto de fundação do PT, na defesa de um PT “sem patrões” e de uma plataforma socialista clássica, pautada pela extinção da propriedade privada dos meios de produção. Se a presença dos trotskistas é uma das marcas do PT desde antes da sua fundação, no final dos anos 1970, é certo que sua influência sobre os rumos finais do partido sempre foi limitada. A exceção é a DS, o mais moderado dos grupos trotskistas do PT, que em alguns momentos da história do partido assumiu uma postura dirigente. Agora, que boa parte dos trotskistas saiu do PT para partidos como PSTU, PCO e PSOL, sua participação no partido é mínima, e o poder de influir quase nulo.
A mais importante fração de esquerda do PT, atualmente, é a Articulação de Esquerda. A AE surgiu de um racha minoritário da antiga Articulação (principal corrente moderada do PT nos anos 1980, berço da maioria dos sindicalistas petistas, atualmente se chama “Articulação Unidade na Luta”, e faz parte do CNB), às vésperas das eleições presidenciais de 1994. Àquela época, as lideranças que fundaram a AE opunham-se à aproximação do PT com o PSDB, então um partido de centro-esquerda, ainda distante da aliança com o PFL que elegeu Fernando Henrique Cardoso em 1994. Hoje, a AE assume um discurso e uma forma de organização interna marxista-leninista, apesar de se dizer anti-stalinista. Temáticas como “revolução socialista”, “centralismo democrático”, a defesa de Cuba e os 90 anos da Revolução Russa fazem parte do seu discurso cotidiano.
Há de se considerar, entretanto, que a prática política da AE – sobretudo em estados onde ela tem maioria, como Santa Catarina – é tão pragmática quanto as suas congêneres centristas. Neste estado, no segundo turno das eleições de 2006, a AE não duvidou em referendar o apoio dos petistas à candidatura de Esperidião Amin, do PP, tradicional político de direita brasileiro. Diversamente, a ultra-esquerda do PT se opõe a tais alianças. Ao contrário das correntes mais radicalizadas da esquerda petista, e em semelhança à DS, a AE nunca se esquivou de participar do governo Lula – é da AE o ex-ministro da Pesca, José Fritsch. Sua permanência no PT em 2005, junto com a DS, quando outras importantes frações da esquerda petista abandonavam as hostes partidárias, foi fundamental para que o PT superasse a crise política daquele ano. Com a DS, o CNB e o MPT, a AE construiu a prática consociada que marcou a atual direção nacional e o XIII Encontro Nacional do PT. Talvez uma boa caracterização da posição da AE seja a expressão usada por Panebianco (2005) para definir a postura de boa parte dos partidos comunistas nas democracias ocidentais do século XX: “radicalismo verbal”.
Numericamente, a AE também é importante no PT, e seu candidato a presidente nacional, Valter Pomar, não disputou o 2º turno do PED de 2005 por apenas algumas centenas de votos[13]. No PED de 2007, também apóiam Valter Pomar e participam da sua chapa para o diretório nacional “A esperança é vermelha” as frações BS e TM[14]. Por outro lado, diversas lideranças da esquerda petista que apoiaram Valter Pomar e participaram da chapa da AE em 2005, hoje, estão ao lado de outras forças partidárias – principalmente, da “Mensagem” –, como a Esquerda Democrática, do deputado federal gaúcho Henrique Fontana, e o prefeito de Recife, João Paulo, importante liderança no PT do seu estado.
Um apoio decisivo à candidatura de Valter Pomar em 2005 foi do PTLM, fração do centro petista, de base na Grande São Paulo, liderada por diversos petistas da família Tatto. Juntos, os irmãos paulistanos Enio Tatto (deputado estadual), Arselino Tatto (vereador em São Paulo) e Jilmar Tatto (deputado federal), politicamente ligados à ex-prefeita de São Paulo Marta Suplicy, atual Ministra do Turismo, controlam grande número de filiados no PT na Grande São Paulo e têm peso decisivo no PED. O apoio do PTLM – que lançou chapa ao diretório nacional em 2005 – à candidatura de Pomar no PED passado é mais uma evidência do pragmatismo da AE.
No PED de 2007, o PTLM juntou-se ao MPT e a uma nova fração, surgida em 2006, chamada Novos Rumos – NR, formada principalmente por deputados paulistas, com larga história no partido, e também ligados à ministra Marta Suplicy. Dentre estes, destacamos Rui Falcão, Devanir Ribeiro, Cândido Vaccareza e José Mentor. Estas três frações lançaram uma chapa unificada ao diretório nacional, chamada “Partido é para lutar”, e apresentaram a candidatura de Jilmar Tatto à presidência nacional. Esta é a outra grande novidade do PT em 2007, e representa mais um fortalecimento do centro petista. Pela primeira vez na história do partido, uma chapa autenticamente de centro apresenta um candidato a presidente nacional do PT com condições reais de vitória[15].
Alguns fatores aqui devem ser destacados. Primeiro, a retirada do apoio - dado em 2005 – do PTLM a Valter Pomar[16], enfraquecendo, assim, a principal candidatura da esquerda petista em 2007. O apoio do PTLM a Pomar foi decisivo para o desempenho da sua candidatura no 1º turno de 2005. Além do mais, apesar deste apoio inicial a um candidato da esquerda petista, o PTLM apoiou Ricardo Berzoini no 2º turno, também aí desempenhando um papel fundamental para a sua vitória. É de se lembrar que Berzoini foi eleito no 2º turno com apenas 51,6% dos votos válidos.
Segundo, a criação do NR a partir de um racha do CNB. Apesar das discussões ideológicas, esta ruptura se deu, sobretudo, após a maioria do CNB paulista ter apoiado o senador Aloísio Mercadante, nas prévias em que ele disputou a candidatura do PT ao governo do estado contra Marta Suplicy, em 2006. Assim como no caso do PTLM, é grande a influência do NR junto aos petistas de São Paulo. Ou seja, as candidaturas da esquerda – Valter Pomar – e da direita – Ricardo Berzoini – petistas ao PED de 2007 sofreram baixas importantes com esta aliança de frações centristas em torno da candidatura de Jilmar Tatto.
Por fim, destaco uma curiosidade histórica. As principais lideranças do NR, junto com Arlindo Chinaglia, estiveram à frente do racha da antiga Articulação, em 1993, que deu origem à esquerdista AE. É emblemático para a compreensão da história do PT que todos estes personagens se encontrem, agora, em uma chapa do centro petista.
É claro, assim, o aumento de importância do centro petista na definição dos rumos do partido, após o início do governo Lula. O PED de 2005 e o III Congresso do PT confirmar este crescimento. Curiosamente, a principal implicação ideológica deste crescimento foi que o PT precisou fazer uma inflexão ideológica à esquerda, se comparado com os dois primeiros anos do governo Lula. Naquele período, o Campo Majoritário dirigia, inconteste, os rumos do partido, colhendo ainda os frutos do PED de 2001. Assim, a partir de 2005, mais resoluções do PT – sejam do diretório nacional, ou do XIII Congresso – passaram a criticar a condução da política macro-econômica do governo federal, sob o comando da dupla Antônio Palocci, no Ministério da Fazenda, e Henrique Meirelles, do Banco Central, caracterizando-a como excessivamente ortodoxa. Após março de 2006, com a saída de Antônio Palocci da Fazenda, assumiu o ministério Guido Mantega, que vem reduzindo o grau de ortodoxia econômica do governo, sobretudo pela visível ampliação dos gastos públicos. Na contramão da ortodoxia, o PAC – Plano de Aceleração do Crescimento – apresentado pelo governo federal no início de 2007, prevê uma progressiva redução anual na produção de superávits fiscais e nas taxas de juros, além de um crescimento do PIB impulsionado pelos investimentos públicos.
No III Congresso do PT, o CNB conquistou uma maioria frágil, precisando igualmente dialogar com as outras frações do partido – principalmente, com as três correntes de centro que apóiam a candidatura de Jilmar Tatto. Neste Congresso, o PT reafirmou sua condição de partido socialista democrático, postura que foi defendida, inclusive, pelos membros do CNB. Se é certo que o “socialismo petista” em nada se aproxima aos cânones da tradição revolucionária marxista, a reafirmação do socialismo é pouco usual nos partidos da esquerda democrática contemporâneos. A inflexão à esquerda vem ocorrendo, assim, justamente no momento em que as frações de ultra-esquerda abandonaram o PT, acusando-o de ter se tornado “centrista”!
Particularmente, não considero que o PT tenha se tornado um partido de centro. Se, nos últimos anos, ele se aproximou do centro, abandonando as posições mais extremadas de esquerda que lhe caracterizaram nos seus primeiros anos, isto não lhe faz um partido de centro. Tal aproximação não levou o PT a se afastar dos ideais igualitários e solitários que caracterizam a esquerda, como diria Bobbio (2001). Mais do que isso, não apenas o PT, como o governo Lula, têm sido marcados – particularmente após a queda de Palocci do Ministério da Fazenda – pela crença no papel positivo do Estado para as políticas de desenvolvimento e de distribuição de renda. No plano internacional, a política do governo Lula prioriza a aproximação dos países “em desenvolvimento”, recusando a lógica leonina do “livre mercado” proposto pelos EUA e pela União Européia ao Brasil e ao Mercosul. Estes não podem ser considerados traços distintivos do neoliberalismo, a principal ideologia da direita contemporânea. No plano da cultura e do comportamento, o PT e o governo Lula são marcados pela sua postura liberal – por exemplo, em temáticas como o aborto, os direitos dos homossexuais e a popularização de novos métodos contraceptivos, como a “pílula do dia seguinte” –, mais uma vez em oposição ao conservadorismo de direita. Se é verdade que segmentos do PT parecem ter se encantado com a agenda neoliberal nos primeiros anos do governo Lula, a reação do partido foi rápida, e o PT, como vimos, reassumiu sua original postura social-desenvolvimentista.
Arriscando-me a usar uma expressão que pode ser ambígua, eu diria que o PT é um partido da “esquerda possível”, realista e pragmática, comprometida com os marcos da democracia-liberal, mas também com a diminuição das desigualdades. Por isso mesmo, afastada da ultra-esquerda, mas igualmente distante da direita. No que não está sozinho, considerando-se a história recente da esquerda. Pelo contrário, o PT compartilha esta posição com a maior parte dos grandes partidos de massas da esquerda democrática contemporânea que, particularmente após a crise da esquerda no final dos anos 1980, mudaram de posição, mas sem mudar de lado.
__________
[1] O PT marca-se pela institucionalização de diversas frações partidárias, dos mais diversos matizes de esquerda. Mas a dimensão regional também pesa na hora de se costurarem os acordos nacionais de divisão do poder interno, o que é compreensível em se tratando de um partido político de um país federalista como o Brasil.
[2] O Campo Majoritário mudou de nome, chamando-se agora “Construindo um Novo Brasil - CNB”, já que não era mais majoritário, mesmo que tenha elegido o presidente nacional do PT, Ricardo Berzoini
[3] Ressalvo que as definições de “esquerda”, “centro” e “direita” do PT não trazem nenhum juízo de valor. Apenas me aproprio da conformação ideológica das frações que é tradicional ao próprio PT. A partir deste momento, estas definições não vão mais vir entre aspas.
[4] As resoluções do XIII Encontro do PT e as teses apresentadas pelas diversas frações ao III Congresso do PT, em 2007, são uníssonas em criticar, com maior ou menor rigor, a condução excessivamente ortodoxa da macro-economia que orientou a primeira fase do primeiro governo Lula, quando Antônio Palocci esteve à frente do Ministério da Fazenda. Assim, estes documentos fazem coro com personalidades de destaque do segundo governo Lula, como Luciano Coutinho do BNDES, Márcio Pochmann do IPEA e o próprio ministro da Fazenda, Guido Mantega.
[5] O lançamento de uma candidatura presidencial petista em 2010, rejeitando-se o apoio a um candidato de outro partido da base aliada do governo Lula, é outro elemento unificador das diversas frações petistas.
[6] Na verdade, este é o último teste que o PT precisa superar para se consolidar como partido nacional. Em se tratando do legislativo, dos governos estaduais e das prefeituras, além do número de diretórios estaduais e municipais, o PT é um dos partidos brasileiros com maior grau de nacionalização, talvez ficando atrás apenas de partidos como PMDB e DEM/PFL que, por serem herdeiros diretos do MDB e da ARENA, respectivamente, encontram-se em situação privilegiada nesta matéria já desde os primeiros momentos da redemocratização.
[7] Quem quisesse disputar as eleições de 2006 precisava estar filiado a um partido político ao menos em 01 de outubro de 2005.
[8] Além do já citado Construção: Democracia e Socialismo, juntaram-se à DS os grupos Alternativa Socialista e Movimento Socialista.
[9] A DS é considerada a “seção brasileira” do Secretariado Unificado da IV Internacional (SU), uma facção mais moderada do movimento trotskista, identificada com o falecido economista belga Ernest Mandel. No final de 2005, a DS aprovou resolução de afastamento do SU, por desabonar o que considerou uma “intromissão indevida” desta organização internacional em uma questão interna sua. Pouco antes, o SU havia aprovado uma resolução que recomendava a DS a se afastar do governo Lula, se juntando aos dissidentes do PSOL.
[10]“O Congresso terminou; a luta continua!”. Capturado do sitio da “Mensagem ao Partido” na internet em 02 de setembro de 2007, no link http://www.mensagemaopartido.org.br/conteudos/exibe/63
[11] Blog de Josias de Souza. “Para Tarso, PT não tem como fugir do debate ético”. 04/02/2007. Disponível no site http://josiasdesouza.folha.blog.uol.com.br/entrevistas/arch2007-02-04_2007-02-10.html
[12] Há ainda uma série grande de grupos regionais, muito difícil de ser mapeada. Estamos nos pautando pelas principais frações que apresentaram teses ao III Congresso Nacional do PT.
[13] Os dois candidatos a presidente nacional do PT mais votados no PED de 2005 foram Ricardo Berzoini, do CNB, e Raul Pont, da DS, respectivamente. Berzoini se sagrou vencedor no 2º turno, com 51,6% dos votos, contra 48% de Pont.
[14] Agradeço as informações que me foram prestadas, por e-mail de 23 de outubro de 2007, pelo sempre atencioso Valter Pomar.
[15] Entretanto, outras motivações mais pragmáticas do que ideológicas também serviram de impulso para esta aliança. Para além do PT nacional, o que está em jogo também é a disputa do futuro do PT de São Paulo. Mais do que uma aliança de frações nacionais do centro petista, observa-se aqui um acordo entre dois grupos controlados por petistas paulistas ligados a Marta Suplicy (PTLM e NR) e o MPT, que tem entre suas principais lideranças o paulista Arlindo Chinaglia, atual presidente da Câmara dos Deputados. Tanto Marta como Chinaglia são tidos como candidatos naturais às eleições de 2008 e 2010 em São Paulo (capital e estado), e a costura de um eventual acordo pode ser muito interessante para os dois.
[16] Por causa do apoio do PTLM, a candidatura de Valter Pomar foi acusada pelas demais frações da esquerda petista - principalmente a DS e a APS, então no PT - de ser o “plano B” do Campo Majoritário no PED de 2005. O principal motivo para esta acusação era a ligação do PTLM com Marta Suplicy, então integrante do Campo Majoritário.
Bibliografia
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SARTORI, Giovanni. Partidos e sistemas partidários. Brasília: UnB, 1982.
SILVA Antônio Ozaí da. O PT e os marxismos da tradição trotskista. Revista Espaço Acadêmico. Nº 00. Maio de 2001. Acessado em 23 de outubro de 2007
O autor:
Rodrigo Freire de Carvalho e Silva é Professor Assistente de Ciência Política (UFPB). Mestre em Ciência Política (UFPE). Doutorando em Ciências Sociais - Estudos comparados das Américas (Unb) e escreve para a Revista Espaço Acadêmico.
Comentário do Blog:
Este texto é uma análise que expressa com clareza o atual momento do nosso partido. Resgata um pouco da nossa história e coloca o PT como sendo o partido da “esquerda possível”. É mais uma contribuição para o debate. Boa luta!
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